quinta-feira, 11 de abril de 2013

O mundo das leis e as leis do mundo


Por Antonio Jorge Ferreira Melo– 21 de março de 2013

A função tradicional da Polícia, de preservação da ordem pública, abrange a defesa da tranquilidade, da segurança e da salubridade. Assim, o sentido mais consentâneo com o contexto global do preceito está ligado à idéia de garantia do respeito e cumprimento das leis em geral, naquilo que concerne à vida da coletividade.
É isto que faz com que seja possível diferenciar a ação da polícia como força coatora do Estado do puro e simples recurso à violência para impor a vontade de uns sobre outros. Não é sem sentido que para nós, a Polícia por meio do recurso à força ou à ameaça de seu emprego, materializa a violência legítima, porque autorizada pelo Direito. Todavia, para a cientista política Jaqueline Muniz, essa visão legalista não corresponde à realidade porque orientada pela proposição inobservável na vida social de que “a lei inventa o mundo”, além de não reconhecer o grande espaço discricionário existente nos fazeres e saberes do trabalho policial, o qual molda a conduta profissional dos policiais mais do que as normas legais. Embora seja evidente que a legalidade tem um papel fundamental na condição de possibilidade das ações policiais, o mesmo não pode ser dito em relação aos seus limites, pois, não é sem sentido que Egon Bittner nos chama atenção para o fato de que, cotidianamente, em qualquer lugar e momento, a Polícia é chamada a intervir sempre quando “algo que não deveria estar acontecendo está acontecendo e alguém deve fazer algo a respeito agora” e já! Todavia, como nos alertam Domício Proença Júnior, Jaqueline Muniz e Paula Poncioni, em relação à realidade do trabalho policial, não podemos cair na ilusão da confiança cega no poder do regramento legal, através de uma ingênua expectativa de que a este se possa confinar toda a complexidade do labor policial. Nessa lógica, quando Ruy Barbosa certa vez mencionou: “Com a lei, pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não há salvação.”, com certeza, não estava se referindo à Polícia. Mas, se o fez, esqueceu-se das temporalidades concorrentes do antes, do durante e do depois que estabelecem os termos de uso de um meio de força que se adéque à natureza intrínseca do trabalho policial: o poder coercitivo e o uso discricionário deste poder na tempestividade do agir. É óbvio que no “calor da hora”, predominam os processos de manutenção da ordem baseados na discricionariedade, o que, não raro, pode justificar e legitimar o uso abusivo da força. A força empregada não como instrumento de contenção garantidor da aplicação da lei, mas como uma ação sancionadora de uma conduta legalmente reprovável. É utópica a idéia de uma “polícia democrática”, subordinada a um Estado de Direito, capaz de exercer o seu mandato legal e legítimo, subtraída da capacidade de escolher, por exemplo, o curso de ação mais adequado diante de cada evento na qual é chamada a intervir. Como ressalta a sempre lúcida socióloga Jaqueline Muniz, a Polícia, por mais “cidadã” que seja, não consegue agir em situações de emergência, em contextos que trazem elementos de incerteza, risco e perigo, sem um espaço de autonomia e liberdade para decidir qual é a alternativa mais apropriada de atuação. Nesse contexto, como manter a ordem no mundo da lei? A idéia de lei envolve restrições racionais e legais aos processos de administração para manutenção da ordem. A ordem sob a lei, por outro lado, subordina o ideal de ordem ao ideal de legalidade e legitimidade da ação policial. De fato, como ressalta Jaqueline Muniz, a imagem corrente de que a polícia está, a todo tempo, aplicando a legislação de forma literal e automática, sobretudo nas atividades de controle do crime, compromete o entendimento da natureza da ação policial nas sociedades democráticas e prejudica o estabelecimento de políticas efetivas de controle da “autonomia” policial. Todas as expectativas otimistas do quanto se pode controlar com a lei e da suficiência de tais controles para influenciar o agir democrático da polícia esbarram na discricionariedade da ação policial, pois, legalidade e discricionariedade, ainda que distintas, são apenas duas faces de uma mesma moeda: a do consentimento social para policiar. Assim, idealismos à parte, não podemos nos esquecer do alerta dos cientistas políticos Domício Proença Júnior, Jaqueline Muniz e Paula Poncioni que, inspirados em Laurence Lustgarten, nos liberta da ilusão ingênua e fantasiosa dessa utopia de uma “polícia legal”: “O uso discricionário da força vai além e fica aquém do mundo da lei. Assenta-se, antes e necessariamente, no impositivo pragmático de ação legítima diante das leis do mundo, com tudo que estas têm de alegal, não legal, inter-legal e mesmo de tolerância diante do ilegal.”

fonte:http://aqueimaroupa.com.br/2013/03/21/o-mundo-das-leis-e-as-leis-do-mundo/

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